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segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Billie Holiday - Come rain or come shine

Para ti... :)

sábado, 4 de outubro de 2008

"NÃO VEJO NADA DE FRACTURANTE EM MIM"

FERNANDA CÂNCIO

Direitos dos homossexuais. Entre 1982, quando a homossexualidade deixou de ser crime, e 2008, quando pela primeira vez o Parlamento vai debater - e chumbar, por via dos votos contra de PS, PSD e PP - o casamento das pessoas do mesmo sexo, contam-se 14 anos de conquistas. Mas numa Europa onde leis favoráveis ao casamento e à adopção somam e seguem, Portugal ainda coloca os homossexuais no limbo. Como se a tabela de 1999 de inaptidões, que lhes chamava 'deficientes', vigorasse apesar de revogada. E como se este amor não devesse, como na expressão de Wilde, ousar dizer o seu nome

E se os direitos de uns fossem os direitos de todos?

"Custa-me tanto quando oiço as pessoas dizer que não é prioritário. A minha vida não é prioritária? Como é que não é prioritária? Isso é de um egoísmo... E há aquele argumento muito estúpido de o casamento entre pessoas do mesmo sexo ir contra "a família tradicional". Não sei bem o que é isso da "família tradicional", mas eu não vou contra ninguém." Casava, se pudesse? "Agora, neste momento, não - estou numa nova relação, é cedo para pensar nisso. Mas há uns anos pensei casar e quis ir a Londres - achava que era possível, em Londres, por acaso nem é. Mais que pensar em casar já, queria ter a possibilidade de o fazer - é como ter carro - se tenho o carro à porta, posso não ir a lado nenhum, mas se o tenho na oficina fico ansiosa: pode-me apetecer ir ver o mar às quatro da manhã. E depois, há a ideia de ganhar família: ganhar sogros, ganhar cunhados, ganhar sobrinhos. Tão bom."

É uma mulher muito bonita. Alta, longo cabelo louro, olhos claros, esguia e sexy. As cabeças viram-se quando ela passa. Trabalha num meio, o da moda e da publicidade, no qual nunca teve de esconder que "gosta de mulheres". Na família, disse ao pai, há muitos anos, tinha ela 19 ou 20. "Ele quis-me levar ao médico. Não era ao psiquiatra ou ao psicólogo, era mesmo ao médico de clínica geral". Ri: talvez o tempo tenha transformado a história numa anedota. Com a mãe, com quem tem uma relação mais próxima que com o pai, nunca conseguiu falar do assunto. "Sinto que ela não quer ter essa conversa, respeito isso". A irmã sabe, "há muito tempo". "Apresento-lhe as minhas namoradas, de umas gosta, de outras não. Ao princípio dizia-me que era "uma fase". Agora já não diz."

Os amigos e amigas também sabem. Quando era mais nova - vai fazer 40 - às vezes, num acontecimento social qualquer, dizia de chofre a alguém a quem a tinham acabado de apresentar. Uma espécie de acção directa, um convite a sarilhos. Ironia, porém, que a reacção mais brutal - descontando a do pai - tenha vindo de dentro do seu círculo de amigos. "Uma das minhas amigas, que perguntava sobre as minhas namoradas e nunca evidenciou qualquer problema com isso, apresentou-me uma amiga dela. Era uma amiga com um historial de estrita heterossexualidade - seja isso o que for -, mas houve uma história de amor. E ela, aquela que fora minha amiga, mudou completamente, foi agressiva, nojenta. Perguntava à amiga dela: "Agora és homossexual, é?". Chegou a dizer-lhe que para ir encontrar-se com ela tinha ido a casa pôr umas calças porque estava de mini saia. Faz silêncio, trava o cigarro, sorri. "São as pessoas mais próximas, as que deixamos entrar no nosso círculo mais íntimo, que têm esse poder de fazer sangue. Estão suficientemente perto para enterrar o punhal."

Às outras coisas - aos gritos dos homens que passam junto a um carro onde estão duas mulheres ("f**** de m****, gandas f****, coisas assim, quando até estamos só a falar"), ao facto de sentir que não pode exteriorizar sinais de afecto, como dar a mão ou um beijo ("Saí no outro dia do emprego e vi um par de namorados aos beijos e fiquei embevecida: tão bonito. Porque é que não posso fazer aquilo? Andei de mão dada na rua em Espanha, onde se vêem mulheres de mão dada na rua. Em Paris andam de braço dado. Não posso, no meu país."), ao ouvir comentários e dichotes homofóbicos a torto e a direito quando as pessoas não sabem que ela é homossexual - cerra os dentes. Fazer o quê? "À agressividade normalmente tento não ligar, é como os gajos meterem-se connosco, uma senhora não tem ouvidos. Mas que dói, dói. Quando estás mais frágil podes chegar a casa a chorar. E incomodam-me muito os argumentos tipo e "e casar com cães?". Estamos a falar de pessoas, vão buscar animais para quê. Não concordo que as pessoas não tenham a noção de estar a magoar. Não lhes dou o benefício da dúvida - querem magoar. Mesmo".

Outra mulher bonita e loura, esta com nome, Sara Martinho, 32 anos, consultora de recursos humanos, a viver há seis anos "com a Rita" diz do seu estupor ao ouvir os fóruns que nos últimos dias têm enchido as antenas com debates sobre o casamento do mesmo sexo. "Sinto uma grande revolta perante os insultos. Pergunto-me se as pessoas quando dizem aquelas barbaridades se dão conta de que estão a falar de outras pessoas. De pessoas com famílias. Tenho mãe e irmãos (o meu pai já morreu) e todos sabem e convivem bem com o saber. Nunca tive problemas com a minha família, tive muita sorte. Mas há pessoas que têm e a consagração do casamento em termos legais pode ter muito impacto a esse nível, o da dignificação das relações. Basicamente, o facto de o Estado recusar reconhecer que as nossas relações estão tão certas como todas as outras é uma humilhação, uma legitimação do insulto.Se não tens direitos iguais, é porque se considera que algo se passa contigo."

A resistência, além do mais, intriga-a. "Atribuir-me direitos não prejudica ninguém, eu poder ou não casar não tira direitos a ninguém. Recordando as palavras do primei- ro-ministro espanhol, que eu amo, uma sociedade decente é aquela que não humilha os seus membros. E Portugal não é um país decente." Esperança? "Sei que é uma questão de tempo - a questão é quanto tempo. Um mês, cinco anos, 10 anos, 20 anos? É que um mês já faz diferença. E faz-me confusão que seja preciso debater, e que se diga que é preciso "mais debate" e "um consenso". Porque é claro que há pessoas racistas e homófobas, vão existir sempre. A lei serve para nos proteger delas, e não ao contrário."

A possibilidade de um contrato igual de nome diferente é-lhe insuportável. "Não me contentaria com algo como sucedeu em Inglaterra, jamais. Continuarei a lutar pelo mesmo - quero uma figura legal igual, não quero nomes diferentes - para quê criar outro nome? Já se fez com isso para o casamento entre escravos, porque se considerava que eles eram inferiores.Tenho receio de que o PS, se ganhar as próximas legislativas - não acredito que tenha maioria - apresente essa proposta , a mesma que a direita defende. Tenho pânico disso, até porque se calhar muitos homossexuais se contentariam com a união civil registada."

O escritor, crítico literário e blogger (www.daliteratura.blogspot.com) Eduardo Pitta, 59 anos, é um deles. Partilha há 36 anos a vida com um homem, facto que não só não esconde como documenta numa página pessoal a que se acede no seu blogue e onde há fotografias do par. "Apresento o Jorge em todo o lado, perguntam-me por exemplo quando vou a congressos qual o nome da minha senhora e eu digo: "É um senhor". Nunca tive reacções adversas nem vi grandes restrições, acho que devemos assumir as coisas e que a sociedade apesar de tudo é mais tolerante do que aquilo que os media fazem passar." Em vários textos do seu blogue, pugnou pela necessidade de pressionar os partidos no sentido de alargarem a lei das uniões de facto, incluindo os direitos de herança (que só existem por testamento e não permitem, como no casamento, que metade do património se transfira para o membro sobrevivo do casal)e de pensão (caso morra um membro do casal, é necessário fazer pedido da pensão no tribunal, não há concessão automática como para os viúvos), em vez de se batalhar pelo acesso ao casamento. Mas reconhece ter mudado de ideias. "A minha posição evoluiu desde os textos mais antigos, que estão publicados no livro Intriga em Família (Quasi Edições, 2007). Defendia a necessidade de união civil a sério, como existe em França e no Reino Unido, para hetero como homossexuais, porque há situações dramáticas de pessoas que vivem décadas juntas e quando uma delas morre a outra fica sem nada. Por esse motivo, não faria birra se existisse algo com os direitos do casamento sem o nome. Até porque, talvez porque sou filho de pais divorciados e o meu pai casou cinco vezes, sou menos sensível ao lado simbólico do casamento que ao das questões materiais."

A alteração que referediz afinal respeito àquilo que não quer para ele mas considera dever existir para quem quiser. "Faço uma distinção entre dois planos, o da minha vida e opções e o da exigência política. O facto de para mim dispensar o simbolismo do casamento não significa que não defenda que quem quer casar-se possa fazê-lo. Acho que devemos ter as duas coisas para as pessoas poderem escolher. Apoio essa luta e estou à espera de que o PS ganhe as próximas eleições e proponha isso. Se ganhando as próximas eleições não propõe ficarei profundamente desiludido."

Um histórico da luta pelos direitos LGBT, do tempo em que a sigla, que corresponde a "lésbicas, gays, bissexuais e transgénero" ainda não existia, António Serzedelo, 63 anos, presidente da Opus gay e um dos autores do primeiro manifesto homossexual em Portugal (Maio de 1974), concorda com Pitta. "O Estado tem de dar às pessoas uma panóplia de opções, sem as empurrar para o casamento. Mas defendo na mesma o casamento, e ainda que haja casamento deve-se alargar a união de facto." Como Eduardo Pitta, dá o benefício da dúvida ao PS, apesar do resultado anunciado da votação de dia 10, em que a bancada socialista vai votar contra, e de deplorar a imposição da disciplina de voto, elogiando "a coragem das Jotas [refere-se às organizações de jovens socialistas e sociais democratas, que declararam o apoio ao casamento das pessoas do mesmo sexo]. "O PS fez algumas coisas pela comunidade gay. Lá fora as coisas também não foram assim tão depressa, e penso que sociologicamente ainda não temos 51% da população a nosso favor. Se calhar temos de convencer mais uns, embora o nosso direito seja indiscutível. Há quem diga que tenho uma posição conservadora - mas acho que sou realista."

Pode até ser, mas o argumento não convence a loura anónima do início deste texto. "Sinto-me defraudada por ter votado neste governo. Não volto a votar PS. Pelo menos a Manuela Ferreira Leite foi honesta, disse o que pensava. O PS enganou-me. Não se admite uma atitude destas num governo de centro-esquerda, que se intitula de "esquerda moderna". Moderna?!" Mas a fúria não lhe rouba o humor: "E se não querem ir a reboque, vão de TGV".

Menos agressiva mas igualmente firme é Eduarda Ferreira, 46 anos, psicóloga e membro da direcção do Clube safo, a principal associação de lésbicas. "A disciplina de voto é pouco democrática, mas se calhar sem isso ia haver mais "nins" que "sins". E tenho grandes dúvidas quanto ao que o PS vai fazer em 2009. Uma coisa igual com nome diferente está para mim fora de questão, porque é o princípio de igualdade que está em causa, não há razão para a desigualdade de estatuto."

Para Eduarda, que diz nunca ter ter sido alvo de reacções "muito negativas", Portugal é um país de discriminação soft, em que se admite a homossexualidade desde que "nem muito visível nem nomeada. Mesmo em família, há a tendência para falar do "amigo" do filho e da "amiga da tia". Quando se fala disso as pessoas de um modo geral não reagem muito mal mas a partir daí aquilo passa a caracterizar a pessoa, ganha uma dimensão desproporcionada. O que é muito desagradável."

Muito mesmo, até porque, como constata a anónima loura- et pour cause -, "Já fui várias vezes olhar para o espelho e não vejo nada de fracturante na minha imagem. Nada."